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Adoro ouvir-te, ver-te e cheirar-te... [37]
Adoro ouvir-te, ver-te e cheirar-te... [37]
Mãe e filha, uma com lágrimas do fumo espesso que cobria o tecto e pintava as paredes brancas, e a outra que chorava pelos azares da vida, tentavam apagar o fogo com panos e uma panela de água. A progenitora afastou a filha e atirou uma baldada para a frigideira em chamas. O óleo explodiu caindo-lhe numa mão e tingindo-lhe a roupa. Os gritos correram porta fora, perseguidas por um fumo que as obrigava a partilhar um abraço materno à muito esquecido pelas eloquências das novas descobertas. Amor, prazer e atenção. Dedicação, carinho e desabafos.
Em poucos minutos os bombeiros chegaram ao local, onde se depararam com uma casa consumida pelas chamas. À sua volta reuniam-se os vizinhos cujas caras se iluminavam pelas luzes dos veículos de emergência.
Ao fim de quase meia hora o fogo estava extinto. Tinham conseguido salvar o 1° piso, mas as fortes chamas tinham danificado parte do tecto, e antes que pudessem voltar a entrar para retirar o que quer que fosse, teriam de esperar alguns dias até que pudesse ir alguém inspeccionar e certificar-se de que o local era seguro. -- Dias? Isso é para quem tem uma boa cunha. E por muito que fosse esse o tipo de "servicinho" que Madalena estivesse habituada a fazer para escapar a multas ou acelerar certos processos, este dia tinha marcado o fim dessa mulher, dessas tendências objetificadas de si mesma. Ela trabalhava numa empresa de prestígio, não precisava de ser "acompanhante de luxo" fosse de quem fosse e para o que fosse. -- Não havia outra solução, teria de ficar a dormir em casa de alguém.
-- "Ajoelhar-me de novo?" -- pensou para si mesma, enquanto olhava para o número de telemóvel do homem que a fez sofrer. Pressionou o ecrã com o dedo e levou o telemóvel ao ouvido. Tocou, voltou a tocar e tocou de novo.
-- Nem vais acreditar no que me aconteceu! Preciso que venhas a minha casa. Por favor, é urgente! -- desligou a chamada e agarrou-se á filha, chorando, beijando-a na cabeça enquanto a sua casa era invadida por polícias e bombeiros.
A vida não podia ser mais injusta. A filha de pijama, exposta aos olhos dos vizinhos e Madalena num choro que não era normal. Ninguém se aproximou para prestar auxilio nem se ofereceram para ajudar no que quer que fosse. A vizinhança interesseira caia-lhe na garganta num nó tão apertado que os seus olhos falavam pela língua trincada entre dentes. A raiva crescia-lhe no peito, enquanto tentava manter a compostura e a força das pernas.
-- Madalena? -- chamou. A pobre criatura virou-se, largando a máscara que lhe cobria o rosto. Chorou, soltando de si uma dor azeda num estômago sem almoço nem jantar, mastigando em jejum o único café da manhã. Caiu de joelhos no chão. Sentiu o pavimento com um prazer que lhe subia pelos ossos e deixou-se cair de cara, amparada pelos braços da sua chefe, que trazia a filha no banco de trás a dormir.
-- Desculpa! -- chorou-lhe.
-- O que aconteceu Madalena? -- perguntou, associando a casa carbonizada à sua amiga. -- Madalena? Queimaste-te!? -- segurou-lhe gentilmente na mão já coberta por um penso. -- Vou-te levar para casa. -- ergueu-a com ajuda da filha.
Os seus olhares cruzaram-se e o ar ficou espesso. A rapariga não podia acreditar que a amiga da mãe era a mesma mulher com quem tinha estado alguns meses antes, num beco escuro de um shopping.
-- Desculpa, não te queria arrastar para esta situação.
-- Não sejas tonta. Está tudo bem, eu estou aqui. -- levaram-na para o carro e colocou-lhe o cinto. As duas cúmplices sentaram-se com um ligeiro desconforto. A condutora olhou pelo retrovisor trocando de novo olhares com a miudita.
-- "Trabalhamos juntas à tantos anos e nunca conheci a tua filha, ou entrei na tua casa... Não te conheço." -- pensou.
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