quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Um elo perdido dos sentimentos...


Constrói reinos à sombra de conquistas, amontoando carcaças e inundando rios com o sangue dos teus e o dos outros. A causa alastra-se como um fogo de labaredas titeritadas pelo vento, substituindo a lua e as boas maneiras no toque das portas velhas. Fazem-se convidados e cultivam as suas sementes em virgens de uma beleza e inocência pura, que os seus anjos da guarda, divinos, se aterrorizam e gelam com tamanha barbaridade cometida por todo o corpo das suas santas prometidas. Não são guerreiros, nem homens, são monstros! Criaturas obscenas que fariam o estômago do próprio Diabo se revirar.
Consomem e são consumidos pela febre delirante de causas não naturais, de origem humana, de mãos pintadas de ouro e o coração encarcerado num reino que alcança o horizonte e engole o sol. Se descer dos céus, ninguém lhe dará tempo para os sermões e os dilúvios serão só mais uma enchente nos rios.
Secam as sementes, cozem o pão e matam um porco com vinho de uma pipa mais antiga que a própria casa, que a própria mesa o chão que pisam. Não existem portas nem portões que os sustenham na marcha virada à terra prometida.
São formigas adaptadas a mundos pós-apocalípticos. Árvores que se entranham na terra mais verde e bichos que furam as pedras mais duras. São um veneno incurável, que bombeia da terra a água do mundo e lhe injecta o resultado das suas inteligentes entranhas. O progresso, fomentado no tacto do verme que engrossa no útero da fêmea, carece de espírito que só pode ser preenchido com objectos de sons e cores do outro mundo. Do mundo do além, para lá da compreensão total e absoluta de quem o manipula. Já não à utensílios de pedra e a era do bronze à muito se derreteu e reciclou, para dar origem a uma nova fornalha de técnicas apoiadas pelo tédio e malandrismo.

Aguardo ansiosamente o momento em que todas as gerações que precederam Adão e Eva, se tornem numa só Era, e tudo se dissipe, sem estrondo, sem cheiro, sem vestígios da nossa existência. Um elo perdido da evolução.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Um sonho persegue-nos, nasce connosco...

[Soldiers going to battle - Pinterest]

Two Steps From Hell - Moving Mountains
When you see the huge enemy armada coming out of the fog...

A cavalaria despedaçava a erva e o orvalho com a luz da lua a seus pés. A marcha conquistava a orla da floresta onde tinham montado acampamento para flanquear em surpresa a primeira vaga que desembarcaria naquela fatídica manhã de remos e água gelada a escorrer-lhes nos corpos.
Na cabeça do plutão surgiu Afonso Henriques, um promissor cavaleiro e futuro rei de "Portu Gal". O número de elementos da sua unidade de ataque, era inferior às ajudas dadas pelos espanhóis, naquela zona longínqua do reino de Leão e Castela, invadida por muçulmanos.
Ao longe, já a cobrir a praia como formigas famintas, desembarcavam os invasores, conquistando passada a passada, espalhando o seu odor e a sua lingua pelo ar. Contava-se uma inferioridade de cinco para um, contra a coligação de Portugueses e Espanhóis. Estes últimos quase desistiram de um ataque, optando pela diplomacia, mas Afonso não estava preparado para dar de mão beijada as terras de seu pai a meio bando de homens grosseiros que vinham da outra ponta do oceano. Se queriam um pedaço da Peninsula Ibérica, teriam de passar por cima do seu cadáver.
-- Henrique, não temos soldados suficientes! Sê razoável! -- aconselhou-o seu grande amigo de infância.
-- Prefiro morrer pelo que acredito! Morrer por um sonho! A fugir como um cão cobarde de rabo entre as pernas.
-- Ao menos espera por eles! -- pediu.
-- Não te preocupes meu belo amigo, nós chegamos para todos eles! Vê! Vê como eles se arrastam de cansaço por esta terra bonita! O que dirão os teus filhos e os filhos dos teus filhos? Esta terra é nossa, foi-nos dada por Deus, por meu pai. Acredita em mim, hoje, nós vamos fazer história! -- desembainhou a espada grande e pesada com um só gesto e apontou para a horda de homens já vencidos pelo cansaço. -- Pelo futuro dos nossos filhos! -- brindou de espada no alto, incentivando o guerreiro no peito de todos os homens que o seguiram durante dias até àquele ponto.
A cavalaria e infantaria de Afonso Henriques, rasgou o ar num arrepiar de rugidos guerreiros que se fizeram ouvir poucos minutos depois nos ouvidos dos muçulmanos ainda habituados ao som da rebentação das ondas e do remos baterem na água.
-- "Vejo neste país um futuro invejável! Só temos de ir lá e conquistá-lo!" -- pensou o primeiro herói de Portugal.


Um sonho persegue-nos, nasce connosco, bem no fundo da nossa mente. Existe por trás de cada ideia, cada palavra, cada sentimento e surge num único lugar: na saudade de cada português.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Somos a criatura que melhor combate o tédio...

[Gardening - Bibury, England August]

O homem vive única e exclusivamente para satisfazer o tédio de viver. Não há nada de relevante em se ser vivo e em estar vivo. Sobreviver é por si só a necessidade de não sucumbir ao tédio. Tanto a caça como a fuga são as raízes que sustentam a árvore da nossa consciência que não quer estar aborrecida e parada. A consciência dá então origem ao interesse pelo que nos rodeia, às perguntas sem resposta. Uma consciência, a nossa, que transcende a capacidade de pensar dos animais de forma abstracta. E mesmo que lhes seja ensinado, aos animais, os números e as cores, em nada isso muda a sua vida enfadonha; Torna até pior, pois agora os animais "educados" fazem ainda mais perguntas, pois compreendem ligeiramente melhor o que vêm e talvez até o que sentem.
Provando assim que o ser humano, tal como os animais, não têm qualquer tipo de plano divino ou astral nesta vida, neste planeta ou neste universo.
O tédio evoluiu-nos e continua a fazer-nos evoluir, pois é nos momentos mais parados da nossa vida, como a ida à casa de banho ou durante o sono, que o cérebro tem tempo e processamento suficientemente reduzido para trabalhar ideias, conversas, imagens, sons e cheiros com mais atenção e pormenor.
"Comecemos pelo principio. No principio, havia um Paraíso, onde o homem vivia sozinho. Havia apenas um único inconveniente, comum a todos os paraísos terrestres, celestes e subterrâneos: Adão aborrecia-se de morte, desfiando lamentos ao bom Deus. Um dia, estava ele a dormitar, foi-lhe retirado um osso excedentário, do qual se fez uma mulher para seu prazer, distração e companhia. Porém, a felicidade não durou muito tempo."
A Génese Natural: Sobre a situação singular dos machos na humanidade - Asger Jorn [pág. 35]

"Que a vida humana deve ser algum tipo de erro está suficientemente provado pela simples observação de que o homem é um conjunto de necessidades que dificilmente são satisfeitas; que a sua satisfação nada consegue a não ser uma situação indolor em que apenas cede ao tédio; e que o tédio é uma prova directa de que a existência em si mesma não tem valor, pois o tédio mais não é que a sensação do vazio da existência. Porque se a vida, por cujo desejo consiste a nossa essência e existência, possuísse em si um valor positivo e um conteúdo real, não existiria o tédio: a mera existência encher-nos-ia e satisfazer-nos-ia. Da forma como as coisas são, não temos prazer na existência a não ser quando estamos a lutar por alguma coisa.
Sobre o Sofrimento do Mundo - Schopenhauer [pág. 25 .5]

Inclui-se neste pensamento, de uma perspectiva macro planetária, pode-se ver que o mundo não é movido apenas pelo dinheiro mas pelo tédio de ideias milionárias ou de soluções. O dinheiro é apenas aquilo que surge no fim da produção, é o que mantém o cérebro activo, sempre apontado para um objectivo e não para um prado verde sem tarefas ou obrigações que rapidamente nos levariam à loucura e ao tédio.
Cada um de nós tem a sua personalidade, desenvolvida pelas suas experiências, sempre diferente, mesmo que ligeiramente, de cada um dos indivíduos da nossa familia mais próxima (pai, mãe, irmãos, etc), mas como familia temos uma personalidade que também partilhamos. Temos ideias que desenvolvemos e esmiuçamos em conversas à hora do almoço/jantar ou no carro em viagem. Mas, na nossa rua também existem outras familias, e se nos dermos bem com os vizinhos, começaremos a notar que partilhamos opiniões similares, talvez um pouco diferentes da rua vizinha. A nossa rua partilha uma aldeia com outras ruas, ou uma vila, ou até uma cidade, e como aldeia, vila ou cidade, haverão ideias e opiniões que partilhemos, apesar de todos nós termos localizações geográficas e meio-ambiente familiar diferente, com histórias diferentes.
É então que entram as juntas de freguesia, os concelhos e os distritos, que englobam um conjunto maior de pessoas, de ideias e opiniões (obviamente), englobando tudo isso num só país, que também ele se engloba num conjunto de estados da União Europeia.
Cada individuo trabalha para combater o tédio; Assim como cada familia, cada rua, cada aldeia, cada vila e cidade, cada distrito e país.

"Existem muito mais cultura humanas do que raças humanas, uma vez que umas se contam por milhares e outras por unidades: duas culturas elaboradas por homens pertencentes à mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas de grupos radicalmente afastados."
Raça e história - Claude Lévi-Strauss [pág. 7]


Nós somos o resultado do combate ao tédio. Nós somos o produto de uma evolução que nos provocou o crescimento cerebral, de perguntas sem resposta e de provas sem fundamentos (como o fogo queima? Como a água engelha os dedos? Como os pêlos crescem?).
O tédio desenvolve, a menos que a necessidade de sair desse estado seja menor do que a vontade de fazer alguma coisa.

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O sofrimento do mundo...