domingo, 29 de dezembro de 2013

A escuridão do teu olhar...

[*** by Tarasov]


Tenho ouvido os teus gritos toda a minha vida. Como uma faca afiada voando bêbeda por todo o meu corpo. Tenho um trago esquisito na boca que se intensifica cada vez que me beijas, e um desconforto calafrio por todas as vezes que me obrigas a ajoelhar. As chapadas que me cortam a cara, soltam do teu corpo a raiva de um ser anormal e grotesco.

A carrinha parou em frente à escola e corri para junto dos meus amigos para jogar à bola. Estava muito sol e algumas nuvens no céu. A brincadeira prolongava-se como uma festa de anos repleta de bolos, até que um deles se entusiasmou e fez a bola cair do outro lado do portão, que me aprontei a abrir. A saia rodopiava com a velocidade e a minha alegria lia-se no rosto. Agarrei na bola e vi um senhor com uma cara simpática a querer oferecer-me um doce. Aceitei, gulosa. Disse-me para não contar a mais ninguém se não tiravam-me o doce e concenti. Com os dois braços, atirou a bola de novo para o recinto da escola e fez-me ficar muito caladinha com um "chio". Agarrou-me na mão levando-me até ao carro onde me deu um peluche. Colocou-me o cinto e levou-me até minha casa. A mamã e o papá eram muito amigos dele e tinham andado a preparar-me uma surpresa.

Com uma mão agarrou-me no cabelo e com a outra numa perna. Gritei e atirou-me contra a parede. Com uma agonia aguda no joelho, que dobrava tanto como uma dobradiça enferrujada, tentei levantar-me, fugir de um quarto sem fuga, de uma prisão que se tornava em cada esbracejo e agonia, no meu próprio túmulo. Arrastava-me pelo chão frio, enquanto as suas mãos me agarravam nos tornozelos como tentáculos de polvo, acorrentando-me para sempre ao som que me roubaria a liberdade.
Como um urso, agarrou-me no pescoço e obrigou-me a levantar do chão para me sentar numa cama feita de lençóis que me picavam as pernas. Com força que não podia igualar, enforcou-me o pescoço na almofada e enfiou a mão gorda por baixo da saia. Os meus gritos ecoavam nos meus ouvidos, fazendo-me consciencializar de que nem um simples grito de puro sofrimento, um guincho, escapariam daquele mundo cinzento ao qual não queria pertencer.

A escuridão do teu olhar, continua a rasgar-me a alma, violação após violação, como um animal no cio, sedento de sexo, incapaz de amar. Quero voltar para os meus papás... quero abraçar a minha mamã e nunca mais a largar. Não quero voltar para a escola, não quero sair de casa, não quero sair do meu quarto.

Solte-me. Deixe-me ir, por favor. Quero sorrir!
Eu prometo que não conto a ninguém...

--------------------

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Perdoo-me...


-- Porque dizes essas coisas!? O que foi que eu disse para reagires dessa maneira comigo?
-- Esperavas um príncipe!? Não o sou! Criar expectativas faz mal Inês...
-- Parvo! Fiz-te algum mal?
-- Não te armes em frágil comigo, está bem?

Parei, enquanto os pés dele marcavam o chão macio e húmido. Apesar do seu peso e altura, a maré apagava-lhes o rasto. Sem nunca olhar para trás, voltou de novo de onde tinha-mos vindo. Onde tinha eu a cabeça quando imaginei um mundo com ele?! Se a minha amiga Francisca estivesse aqui a ouvir-me fazer essa pergunta ou um par de garotos ranhosos, a resposta seria imediata! -- "Entre as pernas dele!".
Não foi a vida que me abriu os olhos neste momento, foi o interior dele, do Ricardo, que conseguiu passar a mensagem cá para fora: -- "Eu não sou aquilo que procuras e só irás sair ainda mais magoada se a relação continuar." Nunca o ouvi dizer tais palavras e muito menos o podia ver nos seus olhos, mas se nós mulheres somos boas numa coisa, é em memória! E cada pedaço de gesto que ele fez diante de mim, quer por mim ou para mim, fizeram-me perceber que algo dentro dele dizia que eu, mais tarde ou mais cedo, seria magoada.
Como fui capaz de ser tão pita!? Tão imatura e inconsciente!? Já nada tem valor ou valorizei demais? Que cega... Óh Inês? Ainda vives no mundo da fantasia?

O mar lavou-me os pés e olhei o horizonte. Abracei-me pelo frio e pela tristeza, em que me afundava entre os cabelos ao vento. Desci o olhar sobre os meus pés e tentei ver, entre um nevoeiro que descia a praia, um puto imaturo que fazia de mim a sua "menina" parva e sonsa.

O próximo rapaz que encontrar, terá de me fazer crescer. Terá de ter vontade de aprender e de ensinar. Não posso esperar tornar-me numa mulher só porque pura e simplesmente cresço velha ao lado de um rapaz que me diz amar. Não posso esperar que o tempo me dê um par de filhos ou que o "nosso" ambiente familiar se transforme com o tempo na paz que li e que me vendem em histórias, em novelas ou nos filmes. Não me posso permitir ser fraca a esse ponto. Não sou uma borboleta à espera de um borboleto que me construa um casulo e me ame para sempre. Sou um ser humano à procura da ligação que dê menos faíscas. Espero demasiado, dou demasiado e esqueço-me de mim com a mesma facilidade com que esqueço a matéria da 4ª classe. Será o meu eu a tentar esconder e esquecer o carinho que não é correspondido? Era suposto ensinar-me e não fazer-me apaixonar sempre pelo mesmo tipo de criança imatura que se acha sempre responsável e confiante. Dessa perspectiva, tem parte da vida feita, mas a vida é como um jogo? Não acho que seja muito saudável deixar para trás etapas importantes, como a humildade. Há coisas que não nos devem ser ensinadas pelos outros. Temos de ser nós, para dar valor.

Perdoo-me a mim mesma por ter acreditado numa relação que não entendia, com um rapaz que não conhecia. Perdoo-me pela falta de experiência por não saber guiar a minha relação para o caminho que nos trará bons frutos. Perdoo-me pelos ciumes e atitudes que levaram o melhor de mim e me fizeram agir de maneira negativa sem qualquer valor evolutivo ou educativo. Perdoo-me por aceitar uma relação para o qual ainda não estou preparada. Perdoo-me por me sentir culpada por algo que não fui capaz de ver e antecipar.

Chorar não é errado, apenas o que não fazes com aquilo que ele representa. Uma tristeza não é apenas um sentimento emocional criado momentaneamente pelo cérebro, é um conforto físico que se apoia em memórias, para nos fazer consciencializar a razão de algo negativo. Serve para nos fazer crescer. É o método que o próprio cérebro possui para se auto-instruir e evitar no futuro.

domingo, 15 de dezembro de 2013

No limite da imaginação...



Cada passo me aproximava mais da entrada guardada por dois vultos encapuçados. O chão liso reflectia a minha figura de forma desfocada e o vidro fosco pintava-se de branco. O corredor pintado de leite, apertava-se sobre mim, pesando nos ombros como um arrependimento agudo. A consciência ficava para trás, deixando-me em piloto automático, incapaz de delinear uma ideia sobre o que estivesse no fim daquela caminhada iluminada. Era quase como se o mundo termina-se naquele rectângulo impenetrável pela minha mente, e me fizesse entrar numa dimensão irreconhecível por todos os sentidos evolutivos que me trouxeram até aqui. Sentia em mim mesmo, a estranha sensação de que o que quer que eu fosse, de onde quer que eu tenha vindo, a evolução de uma espécie, não faria o menor sentido ali dentro. Como um caracol que rasteja pelo chão sem nunca vir a saber onde se encontra.
Os vultos, rapidamente se confundiam com o preto pesado dentro daquele hall de entrada, desaparecendo por completo a já escassos metros, acabando por serem trocados pelo som forte de chuva a cair. Nos vidros bateu uma rajada de vento, seguido de um grande tufão. Perante uma fuga irracional que fervilhava sobre os meus pés e pernas, olhei o interior receando o desconhecido. A violência no exterior, para lá das janelas que escondiam o perigo sem rosto, entrava tocando os trovões pelas minhas costas, fazendo desenhar na minha imaginação um comboio em rota de colisão. O corredor tornou-se cinzento, as suas paredes racharam em fissuras sugerindo tijolos velhos que acabariam por desaparecer numa escuridão infinita, sem tecto ou chão. A parede à minha frente, levemente como o bater de asas de uma borboleta, transformou-se num céu estrelado, aproximando-se depressa de uma grande nuvem dourada de pós de estrelas.
Um arrepio cerebral efervesceu no meu peito, deslumbrou-me a mente. Fascinou-me. Conquistei o espaço em volta com o meu olhar e percebi então o segredo daquele quarto misterioso no momento em que os dois vultos voltaram a aparecer diante de mim.
-- Não posso fazer mal, pois eu não sei o que é. A vida é apenas uma visão. Um sonho... Nada existe. Um espaço vazio, e tu... não passas de um pensamento.
-- Bem vindo à fronteira. Aqui começa o que o teu pensamento se torna incapaz de ver. O universo é infinito enquanto o teu pensamento o conseguir visualizar e lhe der um significado.

Somos um intervalo no tempo que não avança e o espaço que não existe.