domingo, 29 de setembro de 2013

Um momento para mais tarde recordar... [2]



Ergueste-te e endireitaste o corpo despido. Ajeitaste a Carolina junto ao teu seio e percorreste o soalho de madeira até à cadeira de baloiçar da tua avó. Sentaste-te. Beijaste-a na testa e deixaste que te segurasse no indicador. A força dela percorria-te o dedo como um arrepio na espinha. Observei-vos com ternura, testemunhando uma das primeiras interacções entre mãe e filha, o primeiro laço de intimidade que os "homens nunca irão perceber".
A tua a pele branca ao sol, fazia exteriorizar em brilho o interior doce, rejuvenescido, que se alimentava da beleza platónica da nossa semente que com tanto carinho seguravas nos braços. Era capaz de te ver nos olhos, a ansiedade de a veres tornar-se uma pequena mulherzinha, comprares-lhe o primeiro soutien e aconcelhá-la nos namoros. Ouvi-la falar sobre o seu primeiro príncipe, o seu primeiro beijo, a sua primeira vez e criares por fim a união mais inesquecível de todas! Ser-se Mãe!

Irrequieta, a Carolina agitou as pernas e procurou a mama com a boca. Era comilona! Tinha comido à tão pouco tempo, mal tinha arrotado e já estava a pedir mais!? Vamos ter de arranjar um part-time só para a alimentar. Que assim seja. Sai mesmo ao pai quando era garotito, ou será mais à mãe? Sim, porque tu eras igual! Empanturravas-te toda de chocolate e comias os bolos todos que apanhasses na mesa da cozinha. "Diziam que tinha um diabrete no corpo...", lembras-te de me contar? Talvez seja por isso que às vezes te vejo brincar de forma tão irracionalmente criança com a nossa pequenina. O teu sorriso nessas alturas deixa de ser matreiro ou provocador, e passa a ser um verdadeiro tesouro que transmite energia, alegria, felicidade, calma e segurança. Um sorriso tão puro e reconfortante que se pode sentir, para além de ser visto e amado, por todo o corpo como uma descarga eléctrica, que me põem aos pulos por dentro, aos gritos e a correr de um lado para o outro, por saber que estás feliz, que chegaste e me desejas.

Olhaste-a desesperada, estampando-se na cara a frustração de perder uma e outra vez, o mamilo que lhe dava alegria e conforto. Ajeitaste-as, à Carolina e a mama, e devagar chuchou a fome que nos impressionava. Ver-te tão calma e feliz, deixava-me em êxtase.
-- Devagar Carolina. -- avisaste-a. Por alguma razão ela cessou e olhou-te nos olhos, levantou os braços no ar e gesticulou as mãos sobre a tua cara. Sorriste e como mãe babada, endiabrada, provocaste estranhos barulhos junto das suas mãozinhas e na tua cara abriste a cortina para uma das peças de teatro mais cómicas que uma criança tão nova poderia sorrir.

Sabendo como és, vendo o que fazes, sentindo como a amas, completas-me, uma e outra vez, todos os dias, até à nossa velhice.

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sábado, 21 de setembro de 2013

Ou sabes, ou não vales nada...


No tempo dos nossos avós, não era preciso ir aos "ídolos" ou aparecer no "Youtube" para "saberem" cantar. Na altura cantava-se! Hoje... arrasta-se.
No tempo dos nossos avós, a música não precisava de bateria, de guitarra ou tambores, por si só se fazia música. Era fado sem instrumentos, com o melhor instrumento do mundo: A voz das nossas avós, a voz que embalaram os nossos pais, que ralharam e que também educaram.

Hoje, quem não sabe cantar não é gente. Quem desafina, não tem capacidades, não sabe fazer nada, porque a voz não encanta nem embeleza a pessoa. Cantar, é para todos, o tom da música é que é diferente para cada um. É como o tipo de orelhas ou a cor dos olhos. Se deceparmos os sonhos de uma criança, da mesma maneira fácil com que se diz em tom de "júri" sem qualquer tipo de conhecimento ou vocação: "Não sabes cantar, é melhor dedicares-te a outra coisa que dê dinheiro, tipo futebol ou médico.". Sim, porque uma pessoa não pode ser outra coisa que não cantor, futebolista, doutor, médico, advogado, psicólogo, arquitecto ou professor. Para os papás, os filhos têm de ser gente importante, já que eles nunca o foram ou nunca conseguiram ser. Uma pessoa não pode ser Pedreiro? Escultor? Desenhador? Fotografo? Doméstico? Electricista? Ser empregado de balcão ou servir às mesas?
Li no livro "Mulheres Inteligentes Relações Saudáveis" (pag. 97) esta frase muito inteligente:
"Uma pessoa madura é capaz não apenas de elogiar quem ama, mas todas as pessoas que de alguma forma a servem. Quem não é capaz de elogiar porteiros, cozinheiros, empregados de mesa e de limpeza não é digno de ser servido por eles. [...] há pessoas tão pobres que só têm dinheiro; há pessoas tão incultas que só têm cultura académica." de Augusto Cury.
Em Tenho vergonha...
És mais do que os outros por saberes cantar? Por teres carta de condução? Um emprego? Teres boas notas e um emprego que te dá muito dinheiro? Sabes o que tenho de ti? Não é inveja, é pena, por não teres tido a mesma vida feliz e simples que tive, que tenho e sempre terei, ao não ter de me colocar em todos os pedestais, subir todos os degraus de uma só vez e pisar os ombros de todos os que me ajudaram de uma maneira boa ou má a chegar ao estado psicológico onde estou. Porque tu podes ser muito boa em tudo, até na cama e fazer broxes, mas se não és capaz de olhar para ti própria e veres-te, conheceres-te, saberes quem és Tu para ti própria, não sabes fazer o mais importante. Conheceres-te e ser humilde.
Porque se eu não souber fazer o que 70% da sociedade/população faz, sou "anti-social", "pessoa de poucos amigos"? Eu gosto de ser uma pessoa calma, de conversar só quando acho que a conversa é interessante, de ter poucos amigos e de me dar com poucas pessoas. Isso não faz de mim "anti-social". O problema não está em mim, está em vocês, que aparentemente não compreendem a minha forma de viver, de ver e de sentir o mundo que me rodeia. Se eu não souber fazer uma coisa que tu sabes fazer, como por exemplo cantar, tocar viola, piano, dançar, comunicar, não faz de mim um desajeitado ou um zero à esquerda. Sendo os esquerdinos pessoas com QI mais elevado, até seria uma coisa positiva, visto que à esquerda do 0 vêm os números negativos que fazem parte dos cálculos que permitem conhecer e ir conhecendo o universo. Se sou menos do que tu, porque não ser igual, não fazer igual e não ser tão bom, espero que na altura em que tiveres de ver os teus filhos caminhar, não stress por eles não caminharem aos 2 meses, não falarem durante 1 ano, ou tiverem de usar óculos. Não faças deles príncipes, nem delas princesas, faz deles seres humanos. Ajuda-os a crescer, a conhecer a dor e a alegria, a tristeza e o sorriso.
-- Se não sabes, filho, o pai ensina-te!
-- Se o pai não souber? Vamos os dois aprender!
Não quero que os meus filhos nasçam em cima de um banco com a corda ao pescoço, uma lista de objectivos e tarefas a cumprir com prazos rígidos e apertados, nada flexíveis para o seu tempo de aprendizagem, como os filhos de quem vejo nascer à minha volta. Como os filhos que vejo pelo shopping, com um futuro traçado. Com um futuro o qual não pode explorar, construir ou viver. Filhos que não podem falhar nem cair, sair do passeio ou tropeçar. Eu não sou um problema, sou parte da solução. Porque quando tu bateres no fundo, irás andar à deriva, e quando eu chegar lá acima... vou navegar e viajar, aproveitar o sol, a água e as paisagens. Não preciso de muito para ser feliz, nem de ser melhor que os outros para ter atenção. Aprende a viver contigo própria antes de achares que por eu não ter um emprego "digno" e "limpo" que não faz de mim gente. Muito pelo contrário! Aprendo a re-valorizar o dinheiro que ganho, o tempo, o suor e o esforço que faço, para poder viver, não mais humano, mas com mais valor.

E não, tu não és sincera, és arrogante e muito mal educada!

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Quando abrires os olhos...
A tua mente num frasco...
O riquismo e a superioridade...

domingo, 15 de setembro de 2013

Um momento para mais tarde recordar...




Baixaste a cabeça, guardaste o cabelo por trás da orelha e ficaste a olhar para o rebento que encostavas ao peito, junto do coração que amadureceu. Cresceste... a tua sensibilidade ficou mais aguçada, o teu instinto maternal tornou-se mais vincado. Tornaste-te mais simples, mais confiante. Re-encontraste-te e re-escreveste parte de quem eras. Trouxeste do passado a criança e as brincadeiras, as músicas e as roupitas que sempre foram as tuas favoritas.

Olhas-te para mim, que te observava sentada à janela banhada pelo sol que se prendia no cortinado e fazia brilhar o teu cabelo dourado, cintilante como um estrela. Os meus olhos colados no milagre que fizeste nascer, despertou-te a atenção, um olhar meigo e um sorriso caloroso. Voltaste a entrar dentro da bolha emocional que criavas à tua volta e em volta do nosso filho. Um casamento perpétuo e único que te era difícil de explicar. Segurava-lo com a maior calma, mas já mais seria capaz de te o tirar de dentro dessa pequena caixinha de protecção criada pelo teu corpo, pelos teus ombros, braços e mãos. Era só teu, eras tu, somos nós. Um pequenino sere incapaz de comunicar, desajeitado e dependente, que nos proporciona a maior alegria e o maior amor incondicional. Um botãozinho por casar...
Um murmúrio leve ouviu-se no quarto, e lentamente, como as ondas do mar, foi-se transformando numa melodia sem letra, cantarolada com murmúrios hipnotizantes. Começaste então a balançar o teu corpo de um lado para o outro, embalando as duas únicas criaturas enfeitiçadas pela tua beleza e pela tua voz. Não me recordava de alguma vez ter ouvido essa música de embalar, mas trazia-me à memória, momentos de infância que julgava ter perdido no pó daquilo que um dia foi a minha vida mais alegre. Senti na barriga o calor do carinho que emanavas, e nos lábios os teus, carnudos e secos, à espera de uma língua para te saciar a cede. Beijei-te, lambeste os lábios. Com um olhar matreiro sorriste.
-- É só minha! -- afirmaste olhando-a. -- É nossa... -- fitaste-me os olhos. Levaste a mão à minha cara e acarinhaste-me. -- É nossa. -- declaraste. Sorri, beijei-a na testa e senti-a com a cara, olhando-te mãe babada.
A tua beleza emocionava-me. O teu amor invejava-me. Um anjo, perfeita, bonita. Todo o teu Eu exterior parecia gritar aos meus seis sentidos para nunca mais largar a tua mão, deixar de olhar para os teus olhos e parar de beijar o teu corpo.

És a melodia mais bonita que já ouvi, e o abraço mais acolhedor que já senti. Um momento para mais tarde recordar.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Quando abrires os olhos...


Quando acabares a universidade e sentires a vida a bater-te nas costas, nos ombros e na cabeça com uma força que te desmoraliza em cada chapada e em cada murro nos centímetros que te compõem o corpo e te constroem como gente, irás perceber que a boa vida que os teus pais te deram enquanto estudas-te, o dinheiro que esbanjaste quando te o davam para a mão que te beijavam, e apenas a matéria que decoravas só para ter mais um curso, o teu emprego de sonho, a profissão de uma vida, irás perceber que nada irá ter valor no mundo "real", que desleixaste e te despreocupaste em conhecer.

Pais que te pagaram tudo, que beijavam os pés e te deixavam dormir a tarde toda aos fins de semana, só porque estavas cansada de teres estudado tanto. Quando perceberes que ao te terem deixado em paz, quando era preciso arranjar um torneira ou uma telha partida, e te trocavam a tua mão de obra pela de um homem pago à hora, será tarde de mais para começares a fazer alguma coisa. Dar valor ao que não interessa, com valores que não te ajudam a crescer e a amadurecer.
Quando tiveres as obrigações a pesarem-te na carteira como bolas de chumbo que nunca soubeste carregar e gerir o seu peso, porque sempre tiveste dinheiro e nunca foi preciso fazeres um caralho!?, perceberás que a vida que os teus papás te deram, porque pura e simplesmente te queriam ver na universidade, babarem-se para cima dos outros, mostrarem-se orgulhosos do que que alcançaram através de ti, perceberás que na verdade nunca viveste, nem nunca construíste nada por ti. Não foste tu... foram os teus pais que falharam, que te deram de mais, que te protegeram de mais, que te educaram de menos e te tiraram dos ombros o peso que a sociedade cria em torno deles. A única coisa que te afectou e que te deixavam que te afectasse, era as tendências da moda, a imagem que de rica que têm de ti, a boa vida que emanas sem qualquer necessidade.

Quando abrires os olhos, irás perceber de que o caminho que seguiste, foi o errado, o mais fácil, o mais simples e o mais bonito. Quando chegares ao fim da estrada que sempre esbanjaste exageradamente "só por que podes" e porque "tens dinheiro", dar-te-ás conta que tu não estás no passeio amarelo, mas num poço enterrada até à cabeça, com uma simples corda velha como meio de salvação.

domingo, 8 de setembro de 2013

O teu "Olá"...


Saí de casa, fechei o portão e dediquei-me por um bocadinho a uma nódoa em forma de linha ao fundo das calças, junto aos tornozelos. Alheio ao que se passava à minha volta, levantei o corpo e tirei o puxo do cabelo. Sem esperar, passei por ti, e tu, com um ligeiro sorriso no rosto, olhas-te-me com um brilho nos olhos. Quase corada disseste:
-- Boa tarde.
Olhei para ti. Senti a coragem na tua voz e a vergonha por todo o teu corpo. Uma vergonha que espelhei facilmente em mim, e que se apoderou também do meu corpo, da minha mente, da minha voz. Respondi:
-- Boa tarde.
Um "boa tarde" num tom que me deixou a pensar o caminho todo até ao multibanco. Um tom de voz demasiado "adulto" e não... calmo ou meigo. Um "boa tarde" que fazia parecer que já te conhecia à anos, quando na realidade este fora o nosso primeiro contacto, o nosso primeiro encontro. O nosso primeiro namoro entre olhos. Achei um tom de voz que não combina em nada comigo e que tenho apenas de tentar controlar, de melhorar. Não quero assustar ninguém. O que me faz lembrar de um episódio que aconteceu em Aveiro, no Jumbo. Fui atendido por uma rapariga, extremamente bonita, e também eu na altura tentei controlar a minha vergonha pensando naquele espaço como um "intermarche" que eu conhecia e não um espaço onde me sentia exposto apesar de ninguém me conhecer. Ao voltar para a carrinha, a minha mãe comentou que tinha deixado a rapariga muito nervosa e atrapalhada. Que ao invés de ela dizer boa tarde, tinha dito bom dia. Coisa que mal reparei, pois também eu estava nervoso e envergonhado.

O que me surpreendeu em ti, não foi a tua idade mas a coragem que tiveste em cumprimentar alguém, um rapaz, que não conhecias de lado nenhum, que talvez tenhas apenas visto do outro lado do passeio sem saberes quem era. Tenho de admitir que não estava à espera do teu "Olá", mas soube-me bem. Principalmente por te sentir sorrir de vergonha depois de passares por mim. Fizeste-me olhar para trás e perguntar-me a mim mesmo, de novo, se eu era realmente bonito para as outras pessoas. Se eu sou realmente bonito aos olhos dos outros como sou para mim. Já longe, olhei para trás mais umas poucas vezes na esperança de olhares também. O Ego, feliz, pulava de alegria. Pela primeira vez, ouvira o "és muito bonito" através de palavras, de um som, ao invés de um olhar ou de um caminhar.
Tal como me acontece a mim, por vergonha, começo a acreditar que quando uma mulher, uma rapariga não me olha nos olhos, mas me evita, o que ela realmente está a tentar fazer é esconder a vergonha de ver alguém tão bonito. Digo-o porque eu faço o mesmo, para evitar ser apanhado em flagrante a admirar. Não é por ser uma coisa má, é para eu não ter de ficar vermelho que nem um tomate sem saber onde me esconder.
Ao lado de uma rapariga da tua idade, só poderei ser amigo; O que me fez pensar no porquê de tu teres sido capaz de me cumprimentar, de iniciar conversa, e outras raparigas muito mais velhas do que tu, que são autênticos animais de socialização, serem incapazes de o fazer sem primeiro me gozar ou se rirem. E digo isto porque... para além do óbvio interesse que tiveste em mim, tiveste um desejo, um "amor à primeira vista", uma vontade emocional.
Deparo-me, quando vou à feira ou ao centro comercial, com mulheres mais velhas e olharem-me de alto a baixo, quase como se os maridos não tivessem ao lado delas. Um olhar que me "devora" e que me deixa, de certa forma, desconfortável por não saber o que fazer. Será que me olham daquela maneira só porque levo o cabelo comprido? Só pela minha cara? Ou será pelo conjunto tudo?
Continuo sem me esquecer da rapariga que uma vez em Coimbra ficou completamente vidrada em mim enquanto caminhava no sentido oposto.

O teu "Olá" desencadeou em mim uma série de perguntas e respostas. Uma delas foi: "Será que valho a pena para alguém?", "Será que tenho algo de jeito para dar?". Para além de tudo o que sei, de tudo o que faço, será que espremido eu seja capaz de dar o que sou e o que amo?
Tenho pena que sejas tão nova, e que tenhas sido a primeira rapariga a cumprimentar-me na rua, a encarar-me, a sorrir-me. A única e a primeira rapariga sincera, que não conhecia antes, a não se rir de mim mas a deliciar-se com o que viu. De te envergonhares. De seres simpática. E aproveito para te contar um pequeno segredo. Se não tivesses sido tu a dizeres-me olá, eu nunca te teria cumprimentado. A razão? Porque sou muito envergonhado, especialmente com raparigas. Talvez seja essa a razão de ainda continuar sozinho. Acho que as raparigas de hoje esperam que seja o homem a dar o primeiro passo. Parece que comigo vão ter de esperar muito tempo até isso acontecer...

O teu "Olá", mudou a maneira como me vejo e como interajo. Obrigado.

domingo, 1 de setembro de 2013

O silêncio...




A escuridão vai e vem, sobre um vento que nunca sopra, cantando ao som do silêncio que não tem voz nem presença. O uivo do lobo levanta-se sobre a lua cheia, ultrapassando as nuvens e perdendo-se nas estrelas que não compreende. A água escorre no rio como uma veia em adrenalina, protegendo da chuva tempestuosa os peixes peregrinos.
Os pássaros já não cantam, o sol já morreu e um candeeiro acende-se no inicio da rua, onde sombra alguma mora. Os papeis fazem corridas, e o som do frigorifico começa como um zumbido inerte, sem asas. O quarto encolhe, os ouvidos dilatam e até o mais pequeno grilo te desperta a atenção. A roupa acolhe o corpo abandonado, despejado como um balde para a fossa de amores e carinhos que existem apenas na tua mente fantasiosa. Desconheces o porquê, mas decoraste como um mapa a tristeza que te corrói e a felicidade que te faz correr. O sono não vem e dás-te fechada num quarto vazio que já esteve mais cheio, de um algo que espremido não dá nada. A solidão segreda-te ao ouvido, o murro no estômago que não sentes, mas que cheira a azia. Toda a gente nesta casa dorme acompanhado, e tu, és a única ovelha malhada que estraga a tendência, a estatística. Apertas-te então nos cobertores já tão enrolados, na esperança de fazer desaparecer do teu corpo o frio emocional que te acompanha em cada sorriso e em cada passo. Olhas para o lado à espera de ver um milagre mágico personificado, e dás-te de caras com uma parede velha que te conhece o rosto melhor do que tu lhe recordas a tinta. O incómodo que te faz criar histórias, é o mesmo que te destróis os sonhos que já não recordas mas que te fazem relembrar, vezes e vezes sem conta, as merdas que foste fazendo. Os erros que se entalam na garganta e se acumulam como martelos que nunca param de bater no corpo frágil que já não controlas,  que já não respira; Que apenas sobrevive, aos fracassos que guerreiam com a tua fragilidade e os teus sentimentos, à espera sorrateiramente de um descuido teu para assumir de vez o controlo da vida amarfanhada e nojentamente defeituosa.
O medo não é teu, foi-te herdado, assim como tudo o resto que cresceu em ti e contigo. A criação de um ser humano, começa no momento fora das cronologias e dos temporizadores. Um momento que te passa em faísca por esse teu corpo que não te atrai.
A noite não é escura, é apenas o teu lado negativo a observar. O mundo não fechou as persianas só para deixar de te ouvir pensar. Não se esqueceu que existes quando tudo se calou, e não apagou a luz só para deixar de te ver.

O silêncio... está na tua mente, e é nela que começa a tua revolução.