[Living dead by ~OzgeEroglu]
Sentia o peso das malas nos dedos frios das minhas mãos expostas à chuva. O sol sorria, medricas, entre as nuvens negras que roubavam das pessoas, qualquer sorriso, e até a mais berrante cor que pudesse ser apreciada ou odiada por ser diferente, parecia lavar. Um tempo tão negro que fazia o dia virar noite.
Continuei a íngreme caminhada por aquela rua de Coimbra, num passeio tão largo que parecia levar-me a roma. Vi a Universidade no alto, ao lado direito, e soube que os dormitórios ficavam já na rua em frente, logo depois da rotunda e da estrada construída em grande pedras quadrados e negras como aquela manhã.
Os meus pés doíam, o meu corpo arrefecia e o casaco já molhado, transformava-se em mais um fardo físico. Sabia que estava perto e não valia de nada parar, mas era o que mais me apetecia. Então mas eu tinha feito uma caminhada pela Serra da Estrela de 18km e queria parar a algumas dezenas do meu futuro quarto? A verdade é que não tinha pressa para ir a lado nenhum, e pouco conhecia a zona. Sabia que o Shopping ficava por perto e que existe uma paragem de autocarros alguns metros mais à frente. Por enquanto, queria apenas acomodar-me, conhecer o espaço e preparar-me psíquica e fisicamente para o que me aguardava dali a alguns dias.
A chuva tornou-se mais forte, a ela juntou-se o vento e o barulho dos carros a derrapar sobre a película de água que se formava na estrada de alcatrão. A cor esbranquiçada e gasta do grande edifício perdia-se naquela manhã escura, de edifícios adjacentes velhos e portas antigas. Um ambiente rústico que camuflava um edifício com pouco mais de 200 anos, e digo isto porque as universidades eram bem mais antigas e continuavam a manter a cor, a forma, e até as telhas permaneciam inteiras. Bem... não era a mesma coisa se o edifício não tivesse a cair de velho. Não seria a mesma coisa, nem haveria o entusiasmo, a excitação ou talvez o receio, de ficar à espera do dia em que tudo ruísse. "Só espero que não caia comigo lá dentro..." pensei eu enquanto atravessava a passadeira, tentando ao mesmo tempo evitar ser atropelada por vários aceleras. Maravilhava-me, de certa maneira, com a atmosfera enigmática que aquele edifício "perdido" no tempo e escondido da sociedade industrializada e tecnológica, que trocava e actualizava o que era velho e já não tinha piada. Diziam os entendidos, que as coisas velhas são para se deitar for e serem substituídas por coisas coloridas, com designs futuristicos e serem uma parte da pessoa e não um "aparte" da pessoa. Achavam que a casa não era apenas um local para descansar mas um espaço cultural para poder "guardar" o nosso individuo. Não eram locais onde re-criar as bibliotecas dos nossos antigos avós da cidade, se queríamos um livro íamos à internet ou à biblioteca da escola. Estávamos numa era tão elitista, que toda uma geração de cultura se perdia e enterrava no entulho das casas velhas que mais ninguém queria ou não tinham dinheiro para arranjar. As casas, tornavam-se assim, vazias de quaisquer interacções ou comunicações. Já não existiam palavras nem risos para bater nas paredes, apenas o som do teclar ou de um "lol" solto sem sentido.
À porta de entrada, sentavam-se a fumar algumas raparigas, que claramente não partilhavam a mesma idade, mas o mesmo vicio cancerígeno. "Com licença" disse, enquanto tentava, ginásticamente, subir as escadas desviando-me daquelas árvores velhas que não se arredavam nem por nada. O extenso corredor, com o que pareciam ser centenas de portas velhas e sem alma, enchia-se de algumas malas e pequenos grupos de raparigas à porta dos seus quartos, num circulo que estaria eu ainda por descobrir, se seriam de amizade ou por interesses.
Entrei, dei alguns passos, e ouvi gargalhadas estridentes no quarto ao meu lado. Tinha chegado à selva. Ao campo de guerra. Pisava o risco, e estava metida em grandes sarilhos. Mas o pior, é que eu não sabia onde estava esse risco, que forma tinha, qual era a cor, e se mudava de posição com o tempo. A carpete suja e gasta, fora derrotada pelas gerações de raparigas que em nada se preocupavam com as lidas da casa, com a sujidade ou com aquilo que não lhes pertencia. Usavam até ficar estragado, e depois de estragado, tentavam arranjar alguma maneira de pôr a funcionar. Mais ou menos. E como prova disso, eram algumas das portas às quais já pouco ou nada restava das maçanetas. Ou da tinta branca das portas, que se preenchiam de buracos, de tinta a estalar e autocolantes mal arrancados. Alguns, até se pionéses tinham, ou rasgos profundos que desenhavam letras e palavras, frases muito educativas como por exemplo "ÉS UMA VACA" ou "CABRA", "ANDRÉ + ANA = < 3 ". Se era isto que encontrava nas portas dos quartos, nem queria saber o que me esperava nas portas das casas de banho.
Os olhares colaram-se em mim, e as conversas cessavam à medida que passava por todas aquelas leoas com as garras de fora à espera de me atacar pelas costas. Ao fundo, junto às escadas para o 1º piso, as casas de banho. Retirei o papel do bolso do meu casaco e tentei memorizar o nº da porta do meu quarto. "39". Sob os olhares atentos, caminhei até ao fundo do corredor do 1º piso, e encontrei do lado direito uma porta sem número, com arranhões e a tinta queimada da exposição ao Sol. Do lado esquerdo, o nº 40, mal se aguentava em pé e a cor do metal prateado perdia o seu brilho de outrora. "Que sorte a minha, deram-me logo um quarto com a porta a cair aos bocados.".
Semiaberta, espreitei. Bati duas vezes e abri devagarinho...
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