domingo, 19 de maio de 2013

Eu não quero morrer... III


Por trás da vedação, começavam a surgir edifícios de betão, baixos, feios, grosseiros, assustadores e intimidantes. Vapor saía de umas chaminés, e por breves momentos, a mão da minha mãe perdeu as forças.

O seu passo tornou-se mais lento, sem pressa. A cara dela olhava sem expressão. Estava pálida, como quem nunca tinha apanhado Sol. A sua cabeça manteve-se imóvel, guiada pelo olhar que parecia fingir passar por alguém que não queria cumprimentar ou ver.
Durante a caminhada até ao portão guardado por muros altos, aguardavam-nos vários senhores fardados, que faziam as pessoas deixar todas as suas malas cá fora. Com alguma relutância a minha mãe atirou a minha para cima do monte já tão alto como eu e guiaram-nos até um complexo com vários cabides. A vergonha tomou conta da minha cara, à medida que via meninos e meninas, mulheres e homens, despirem-se à frente uns dos outros.
-- O que é que estas pessoas estão a fazer mãe? Elas não sabem que estão nuas umas ao pé das outras?
-- Vamos todos tomar um banho. Não há mais espaço e estamos todos com pressa de voltar para casa.
Um senhor já despido da cintura para cima, afastou a sua pouca roupa para o lado, e deixou que a minha mãe poisasse o casaco dela no cabide. Colocou-me em pé sobre o banco e desabotoou-me o casaco. Queria fugir de tão vermelha que estava. Tapar os olhos e fingir que não estava a ver aquele momento tão tabu para a minha mente ainda tão inocente. Olhei para a minha mãe e assim de me deixei ficar durante todo o processo de despir.
-- Mas eu não cheiro mal mãe... -- retorqui, enquanto me segurava nos ombros dela e me tirava os sapatinhos pretos pela fivela. Ela sorriu. Olhou para mim e disse de uma forma calma.
-- Eu sei meu amor, mas podemos ter algum vírus e assim limpa-se tudo.
Retirou-me o resto da roupa. As cuecas e as meias foram arrumadas junto com as roupas da mamã, dentro do seu grande casaco. Sentei-me na ponta do banco e vi-a despir-se. De uma forma mais ou menos lenta, tentando não se despir por completo à frente de tanta gente. Ganhou coragem, e deixou-se cobrir apenas pelas mãos, nos seus peitos e na sua concha. Senti o perfume nas roupas por breves segundos, até ser arrastada de novo pela mão, para fora do complexo onde todos se alinhavam e faziam fila até um edifício quase tão baixo como eu.

O passo era lento, e a face de todos os que componham aquela marcha, assemelhavam-se às dos mendigos que vi uma vez nas ruas, pobres, famintos, tristes, sozinhos, abandonados. De cabeça baixa, guiávamos-nos pelos pés da pessoa da frente. Fazia-se um silêncio ensurdecedor, o ambiente criado à minha volta era de uma frieza poderosa. A barriga contorceu-se de novo. Segurei com força os dedos compridos da mãe e os meus passos tomaram conta do destino do meu corpo. Fizeram-nos parar, enquanto o primeiro grupo de homens e mulheres, crianças e jovens entravam dentro da pequena casita de betão.
Empurrados com força, à cacetada e ao pontapé, enfiaram-se assim quase 100 pessoas num espaço que não dava para mais de 60.
Estranhei, e entranhei. O silêncio quebrou-se com os gritos de uma senhora. Com o decorrer do tempo, todas se iam tornando claustrofóbicas, assustadas, stressadas. Começava-se então a cantar uma arrepiante tragédia. Contorciam-se todos de um lado para o outro, com berros e gritos estridentes, acompanhados por murros na porta pesada, trancada.
O gás foi ligado e o caos instalou-se em segundos. Lentamente os gritos desconfortantes que me faziam arrepiar a espinha das costas e o cabelo da nuca, tornaram-se em murmúrios e pequenos sopros.

Podia-se sentir a respiração das pessoas ao meu redor. Leve, com consciência de que estariam a entrar no inferno, de que em breve estariam mortas, queimadas e atiradas para uma valeta comum. Engoliam em seco e saboreavam o ar que nunca lhes tinha sido tão puro até àquele momento. As memórias passavam depressa, tal como o tempo. A agonia via-se nas caras e os pêlos eriçavam em sincronia nos braços de todas as crianças que começavam a chorar descontroladamente. A garganta parecia cortar-me o ar e sentia o medo subir-me pelas pernas e braços.
Era agora... o ultimo momento nesta terra. A minha mãe segurou-me com força nos braços dela, junto ao seu peito, enquanto me beijava sem parar os lábios já trémulos e tão secos pelo medo das imagens e sons agora fantasmas. Soluçava, chorava, tremia e exprimia-se contra todos os outros adultos. Os gritos voltavam aos poucos. Pareciam vindos do próprio inferno, de um sofrimento infinito, de almas furadas , perfuradas pelo diabo, comidas, queimadas, esfoladas.
-- A mamã ama-te muito! -- olhei em volta. A porta foi fechada e trancada. O pânico já instalado intensificou-se. Queria sair dali.
-- Mamã... -- chorei de punhos fechados atrás do seu pescoço
-- Krystyna, olha para mim. Olha para os meus olhos! -- limpei as lágrimas. -- A mãe ama-te! Não vais sentir nada. É como adormecer.
-- Tenho medo! -- respondi. O coração da minha mãe saltava-lhe pelo peito, assim estaria o meu, que o sentia no pescoço e na barriga.
Ligaram o gás, verde e espesso, inodoro, com um travo a azedo na língua.
-- A mamã adora-t...

Os meus braços permaneceram à volta do seu pescoço.

O cheiro a sabão perfumado voltou a cair sobre os meus cabelos. Estava a tomar banho, a brincar com uma pequena boneca, enquanto a minha mãe me lavava os cabelos com sabão e um pente.
-- Dá um beijinho à mãe. -- pediu ela, aproximando-se.
Beijei-a. Estava em paz.


Inspirado em Krystyna TrzesniewskaCzeslawa Kwoka e no documentário "Viagem ao Interior do Holocausto"

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