domingo, 20 de outubro de 2013

Às vezes esqueces-te...



Olhou para ele, observando nostalgicamente, como gotas que batem em janelas, uma lágrima que percorria os contornos da sua cara, sentiu um calor no peito e as mãos frias.
-- Eu sou tu nos teus dias mais tristes, e tu és eu, nos meus dias mais felizes. Não preciso de dor para sofrer e não preciso de sorrir para ser feliz. Basta ouvir a tua voz junto ao meu ouvido, sentir as tuas mãos tocarem-me a cara e os teus olhos conquistarem os meus com o tempo. É um amor que me faz esquecer a dor de não te ter. Sonhos e desejos que me aquecem à noite, aprisionando-me por vezes em sonhos abafadores, tristes, repletos de amargura e desafios impossíveis. Vejo-te em cada cor de cabelo, cada caminhar confiante e esfolhar de livros. Estás em todo o lado, mas é a tua voz que denuncia o sócia do teu eu que me entristece, me enraiva e me faz amar-te.
-- Os teus dias mais tristes, Cátia, são os meus dias mais felizes. -- ela olhou para ele, estranha, sem conseguir perceber o que queria dizer. Ele era feliz por saber que ela estava infeliz? Gostava de a ver sofrer? -- São os mais felizes, porque finalmente desces dessa tua grandeza e partilhas comigo uma dor que não me quer largar a mão. Tornas-te mais carente, tristonha e eu embalo-me contigo num carinho mútuo. Olhas-me nos olhos, agarras-me as mãos e beijas-me sem pensar. Fazes-me feliz nos teus dias mais tristes, porque deixas de ser a Cátia e o teu Eu, para passares a ser a consciência instintiva e emocional que esqueces que existe na tua vida e na dos outros. Relembras-te de quem sou e do que faço na tua vida, que achas ser tão perfeita. Uma vida imperfeita que eu ajudo ao limar as pontas da tua rabugice, intolerância ou falta de paciência.

Firme como uma estátua, com os seu par de olhos acastanhados fixos nos do seu namorado, Cátia manteve-se calada. A voz do rapaz entrava-lhe com toda a sabedoria, quase como um poema que explicava o mundo. Tremeu com um arrepio na espinha. Os cabelos eriçaram-se e ficara surda por um momento, sem nunca deixar de ver a face simpática daquele que a comprava através do dom da palavra. Ouviu as ondas do mar perto de si e os sinos tocarem ao fundo. As gargalhadas de crianças seguiram-se como um comboio que se aproximava, tornando-se, no fim, no som da chuva que batia na sua janela. Olhou-a de olhos pesados. As emoções escorriam pelo vidro, aprisionando-se num grito cheio de força de vontade, mas sem poder para fazerem a diferença. Tal como as palavras que se agarravam às papilas gustativas, arrastando uma voz roca e fraca, tal como as fracas palavras que não pensava em dizer.

-- Esqueci-me do quão bonito és...
-- E do quão bonita te tornas...
-- Do calor que me provocas no peito...
-- E na fraqueza que sinto ao respirar...
-- Dos lábios molhados...
-- E nas palavras doces ao teu ouvido...

Cátia sentiu as pernas pesadas. As mãos carentes tocaram a própria cara e ajeitaram o cabelo. Ele sabia que estava submissa, cansada, necessitada e caminhou calmamente para junto daquela rapariga calada, tranquila à janela. Sentou-se, olhou-a e com um sorriso de compreensão, de persistência, levou, com alguns dedos, uma madeixa à frente da cara dela para trás da orelha. Tocou-lhe a cara e de olhos apaixonados nos dela, beijou-a no momento oportuno. Cátia soltou uma lágrima. A chuva lá fora tinha finalmente conquistado. Vim, Vivi, Venci.


A única imagem que faz sentido de pernas para o ar, é a do universo.

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