terça-feira, 1 de março de 2016

A rapariga que cheirava a pão quente... [3]

Sentada à mesa, olhando pela janela, a avó observava as aventuras da neta que tão vincada na sua memória a faziam lembrar a própria filha, que fugia brincando dos patos e das galinhas, que se tornava mãe dos coelhos e pintainhos. O avô juntou-se à avó na recordação do tempo. O que era a velhice sem netos e bisnetos?
O avô aproximou-se da sua amada, deu-lhe a mão, e num momento indecifrável, por qualquer animal ou pessoa neste mundo, partilharam uma pequena memória. Sofia tinha a mãe impregnada no corpo.
Viram-na correr até ao fundo da quinta, trepando a muralha que separava a vinha do vizinho dos animais do seu avô, cuja gula não tinha fim.
O Sol dizia-lhe "Olá", e ela juntava todas as coisas à sua festa; o seu sorriso, a sua energia, o seu olhar, as suas mãos delicadas. Sentia o ar entrar-lhe nos pulmões, sem venenos ou doenças, e assobiava uma música clássica, que recordava de quando era criança. Um som que dançava com o incenso do quarto do pai e que parecia vir das próprias paredes escondidas pelos livros. Tornara-se na melodia que melhor descrevia o seu espírito. Juntava o primeiro passo com a primeira mesada. Recordou o toque pesado do vinil na sua mão, cuja escuridão da sua cor sempre lhe dera um ar misterioso e sinistro.
Perdida por um momento, procurou os seus avós ao longe. Olhavam-na num só sorriso. A avó acenou.
Vagarosa e curvada, preparou a mesa para fazer um bolo. O seu melhor amigo de amor eterno, deixou-se cair no sofá. Ajeitou a lenha na lareira, incitando o fogo a rugir, e deu-lhe de comer mais umas cavacas compridas.
Finalmente o cheiro da farinha sentia-se no ar. 

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